O Brasil já decretou: o Grêmio mudou de patamar. Agora, precisará saber lidar com isso

Quando estive em Belo Horizonte no começo de semana, uma reação dos mineiros que conversaram comigo sobre futebol (muitos, tanto atleticanos quanto cruzeirenses) era unânime: a estranheza e desconfiança - esta última algo típico e já folclórico do simpático povo de Minas - quando eu dizia não considerar o Grêmio um candidato ao título brasileiro. Citavam a ótima vitória sobre o Santos na Vila Belmiro, os triunfos contra Corinthians, Palmeiras e Cruzeiro e, claro, o óbvio 5 a 0 sobre o Inter para me desmentir, dizer que eu estava escondendo o jogo. Alguns consideravam o Tricolor o time mais agradável de se ver jogar no país atualmente, o que praticava o melhor futebol, até. Voltei quarta à noite para Porto Alegre. Ainda bem: depois de ontem, após o extraordinário 2 a 0 aplicado em pleno Mineirão sobre o Atlético, ficaria quase impossível argumentar com eles.

É que já não se trata mais de uma questão de opinião. Contra fatos não há argumentos, diz o ditado. E já é fato: o Grêmio mudou de patamar nos últimos dias. De time visto com certa desconfiança após uma série de resultados negativos, se credenciou, com dois placares espetaculares e duas atuações de altíssimo nível, em um candidato ao título brasileiro. Sim, candidato. Talvez eu não concorde muito com isso, tu que me lês também não, o próprio Grêmio, o técnico Roger, o presidente Romildo. Mas a opinião geral é essa. E todos na Arena vão ter de saber de lidar com essa mudança de padrão que a equipe atingiu e conquistou.
A compactação defensiva do Grêmio foi tanta que Pedro Rocha e Giuliano ocupavam o campo defensivo quase junto à área quando o Atlético atacava. Douglas aparecia pelo centro, pronto para puxar o contra-ataque. Fora deste quadro, o único jogador mais adiantado era Luan, que servia como referência para as saídas em velocidade
Não é apenas a distância curta para Corinthians e Atlético que a tabela mostra que torna isso algo já corrente no país. São as atuações da equipe de Roger. Eu disse aqui e no Carta na Mesa, após os mais resultados ruins (Fluminense, Criciúma - na Arena - e Sport), que, mesmo com os placares adversos, o Grêmio jogava bem quase sempre, criava chances, e não vencia por circunstâncias muito próprias, embora merecesse e jogasse para tal. Os desempenhos, como o próprio Roger também frisava, não podiam ser desconsiderados nas análises desses jogos quando se fosse projetar o que o time seria capaz de realizar no futuro. As duas vitórias recentes provaram isso.

Embora espetaculares, elas foram muito diferentes. Domingo, contra uma equipe fragilizada, mesmo em clássico, uma imposição indiscutível dentro de casa levou à goleada histórica no Gre-Nal. Ontem, não seria possível fazer o mesmo, mas sim jogar com inteligência, e foi exatamente o que a equipe gaúcha fez. Não partir para cima do Galo, não se impor fora de casa no Mineirão lotado, nada disso é problema. Ao contrário: mostra que o Tricolor sabe encontrar o caminho da vitória de maneiras completamente distintas, em ambientes diversos. Poucas coisas mostram que uma equipe está mais preparada para ir longe do que isso: saber superar dificuldades tão distintas umas das outras, já que o Campeonato Brasileiro é um certame de cenários muitas vezes completamente opostos.

O Atlético tem um elenco indiscutivelmente mais amplo e qualificado do que o Grêmio, seu time titular é bem mais tarimbado, mas a ideia de que Roger tira leite de pedra precisa de uma revisão urgente. O que o técnico gremista tem conseguido é algo um pouco diferente, embora também seja um mérito fantástico: extrair de bons jogadores o seu melhor. É também uma arte, algo dificílimo de se obter.

O primeiro gol ontem, uma pintura em termos coletivos, é a prova disso: a jogada foi trabalhada à exaustão no treino de quarta-feira, véspera do jogo. Para um time que já se conhece bem, valia mais a pena ensaiar contragolpes rápidos a partir de um toque de bola em altíssima velocidade, do que fazer mais um monótono coletivo. Roger sabia que o Galo pressionaria forte a saída de bola, e que só assim poderia estancar a pressão e chegar ao gol. A jogada foi uma pintura: onze passes (ver quadro abaixo) que passaram por Galhardo, Maicon, Luan, Pedro Rocha, Walace, Giuliano e Douglas, quase todos de primeira. Um golaço, um golaço principalmente de Roger, pois foi ensaiado num treino tático em campo reduzido, mas que só se tornou possível porque todos os nomes citados sabem jogar bola. Jogadores ruins, me desculpem os céticos, não são capazes de fazer isso contra o melhor time do Brasil (o Galo ainda é o melhor que temos por aqui, mesmo que tenha perdido a liderança) em sua casa lotada.

No segundo tempo, o mérito do Grêmio foi ter a frieza e a eficiência de matar o jogo no começo, esfriando a pressão que o Atlético tentaria, mas não conseguiu impor. Aproveitou o bom momento para, num lançamento espetacular de Douglas para Giuliano, fazer o 2 a 0, que seria impossível de buscar. O Galo criou muitas chances, é verdade. Luan melhorou a produção ofensiva mineira e criou problemas que conseguiram ser estancados durante todo o primeiro tempo, a partir das atuações seguras de todo o sistema defensivo, em especial de Erazo e Geromel, que contavam com o apoio de todos, inclusive os ponteiros Giuliano e Pedro Rocha. Quando eles eram superados, Marcelo Grohe aparecia. O Grêmio se defendeu com muita gente sempre, e nos poucos ataques que teve definiu a parada com superioridade numérica contra a defesa do Galo. Algo típico de times majestosamente bem treinados.

Não há discussão: o Grêmio perde tempo se tentar se colocar como azarão, pois não é mais. Quando um time atinge duas grandes sequências em meio a um campeonato complicado e parelho, é porque deve mesmo ir longe. O discurso externo, porém, não poderia ser outro: pensar jogo a jogo, é cedo para falar em título, manter os pés no chão etc. O modo para encarar o campeonato deve ser esse, mas acrescido de algo óbvio a partir de agora, e que Roger terá de trabalhar: alertar seus atletas para o fato de que, agora, todos olharão para o time com outra cara, com ainda mais respeito do que antes. Passadas as enormes dificuldades de pegar um Gre-Nal e o Galo na sequência, os próximos cinco jogos podem aumentar ainda mais esta sensação: o Grêmio enfrentará cinco equipes que estão do meio para trás da tabela - Joinville, Ponte, Coxa, Goiás e Figueirense, sendo três delas em casa. Tem tudo para encostar de vez nos ponteiros, portanto, se mantiver o nível de concentração. No mínimo 10 pontos precisam ser obtidos nesta série, senão mais.

Porém, não será tão fácil assim: em meio a esses jogos, há dois contra o Coritiba pela Copa do Brasil, o que incha o calendário e causa cansaço extra. Em julho, muito do decréscimo gremista passou pelo excesso de jogos, e as partidas contra o Criciúma, pela Copa, atrapalharam bastante neste aspecto. Será a hora do preparo físico e, principalmente, do banco, que é a última desconfiança que ainda paira sobre a Arena. Luan, por exemplo, já não enfrenta o Joinville, suspenso pelo terceiro amarelo. É uma boa prévia do que virá pela frente. Ainda assim, é melhor saber lidar com o favoritismo diante de adversários mais fracos do que contra times do mesmo nível. Até a tabela conspira a favor.

UM GOLAÇO EM 11 TOQUES E 21 SEGUNDOS
Galhardo desarma Thiago Ribeiro na linha de fundo, aciona Walace (1), que toca para Pedro Rocha (2), que devolve para Walace (3). O primeiro marcador já ficou para trás
De primeira, Walace acha Maicon (4), que dá de primeira para Pedro Rocha (5), que devolve para Maicon também de primeira (6). Notem que são três atleticanos marcando três gremistas, mas os toques rápidos começam a abrir espaços
Como o marcador de Maicon precisa cuidar do avanço de Pedro Rocha, o volante gremista fica com espaço para girar, dominar e pensar o passe, mesmo em meio à pressão. Ele aciona Luan (7). Walace, agora desmarcado, tem espaço para avançar pelo meio
De primeira, Luan devolve para Walace (8), que se infiltrou pelo espaço vazio. Ele, de primeira, já aciona Douglas (9), completamente desmarcado, pois o Atlético apostou em roubar a bola de forma adiantada. O risco de uma marcação sob pressão é esse: o adversário sair jogando com velocidade e qualidade a ponto de armar um contragolpe e pegar a defesa desprevenida. Douglas terá duas opções, uma por cada lado: Giuliano e Pedro Rocha. O contra-ataque está formado
Com Pedro Rocha impedido, Douglas mostra visão e jogo e escolhe a opção correta e lança Giuliano (10), pegando a defesa desguarnecida e fora de lugar. É um mano-a-mano: quatro gremistas e quatro atleticanos. Porém, enquanto os jogadores do Galo correm para recompor suas posições, os do Grêmio estão em suas posições certinhas, como mandava a ficha técnica: Douglas e Luan centralizados, Giuliano e Pedro Rocha abertos 
Giuliano conduz inteligentemente para o meio, atraindo a marcação de Jemerson, que abre um clarão pela direita. Douglas se movimenta com perfeição por trás do companheiro para receber o passe já dentro da área e fuzilar Victor. A ação toda, de área a área, durou 21 segundos

Comentários

Tiago disse…
Tenho mais receio de como a própria torcida vai reagir a isso, porque é tanta ansiedade que passamos do quase inferno pro quase céu em menos de três meses.

Até quando vai o contrato com o Roger? A direção só não deve renovar por um período longo se não quiser ou se for por um valor muito acima da realidade. Mais do que um favoritismo de momento, acho que o mais importante é que o clube finalmente parece ter encontrado um caminho para o futuro, em vez de tentar repetir as fórmulas do passado.
A torcida é passional. Roger sabe disso, e até por isso tá na cautela. Ele mesmo comentou, depois do jogo contra o Galo, que "antes o time era limitado, agora falam que é um dos melhores". Quanto a isso, creio que o time está blindado. A torcida que vibre como achar melhor.

O contrato do Roger vai até o fim deste ano, mas tem uma cláusula de renovação automática, se não me engano, caso o Grêmio queira seguir com o trabalho dele. Ou seja, ele fica no Grêmio até dezembro de 2016.

Mas Tiago, tu tocou num ponto fundamental: o Grêmio parou com os pensamentos mágicos, que remetiam ao passado e que vinham desde 2010. Nesse ano, um ídolo (Renato) foi contratado pra ser técnico. Também aclamaram o Odone como presidente, e todo mundo achou que o herói do mundial e o presidente dos Aflitos formaria uma dupla imbatível.
Naufragaram tanto que em 2012 trouxeram o Koff de volta. Todo mundo achou que daria certo, que o passado estaria voltando. 2013 só não foi um fracasso porque o time arrancou um vice-campeonato no Brasileirão.
2014, trouxeram de volta o Felipão, e de novo todo mundo sonhou. De novo não deu certo.
Agora acabaram as fórmulas mágicas e o passado. O Grêmio, com um presidente que é mais administrador que político, tá com uma gestão de contenção de despesas, de saldar as dívidas existentes, de revelar jovens da base, de evitar contratações caras (e foram muitas entre 2011 e 2014, dá pra contar nos dedos das mãos e dos pés), de apostar num técnico emergente. Era a renovação que muita gente pedia. Felizmente, ela está acontecendo. E espero que siga nessa direção.
Chico disse…
O Tricolor construiu o contra-ataque perfeito e provocou o maior minerazzo desde a Copa do Mundo!

PS: muito didática a explicação do blogueiro sobre o golo do Tricolor.
Chico disse…
Que grande jogo fez Giuliano
Chico disse…
dodóilessandro para argel: "no cúlo de tu madre". Nunca mais se apaga.
Vine disse…
Realmente, o primeiro gol foi uma pintura. Estilo tiki-taka do Barcelona (risos). O segundo, que vi em um ângulo diferente, parecia a réplica do primeiro, pois o início da jogada, pra se desvencilhar daquela marcação forte, foi rápida e envolvente.

Que trabalho do Roger, heinhô?
Vicente Fonseca disse…
O Roger alia a novidade de quem está atualizado com a vontade de quem é emergente com o conhecimento da cultura de futebol do Grêmio. Por isso tudo é que gostei muito de sua contratação, e que fico ainda mais feliz por ela estar dando resultado.

Valeu pelo elogio, Chico!