O Bugre Missioneiro está de volta!

Equipe sub-17: São Borja plantando os louros do futuro
As dificuldades econômicas da Zona Sul, Fronteira Oeste e Missões do Rio Grande do Sul são conhecidas e não representam novidade alguma. No futebol, isto se reflete em um Campeonato Gaúcho cada vez mais concentrado na Serra e na Região Metropolitana. O São Luiz, de Ijuí, é o único clube que está na elite estadual com sede próxima destas regiões. Para piorar, a Federação Gaúcha de Futebol ressuscitou os confins da Terceirona para o ano que vem. Não bastasse a Segundona ser deficitária o suficiente, há como ir mais fundo ainda. Equipes tradicionais, como os dois clubes de Bagé, rebaixados neste ano para o terceiro degrau do futebol pampeano, correm o risco de fecharem as portas.

Dado este cenário desolador, uma notícia veiculada em alguns jornais na semana passada soa como uma flor que nasce em pleno asfalto, um sopro de vida e esperança de que o futebol gaúcho, e em especial o das regiões com maiores problemas econômicos atualmente, tenha jeito. Um grupo de ex-jogadores (entre eles Polaco e Giba, ambos ex-Grêmio) decidiu refundar o São Borja, licenciado do futebol profissional há 14 anos. Foi preciso criar um clube juridicamente novo (Associação Esportiva São Borja, em lugar da velha Sociedade Esportiva São Borja), já que o antigo estava falido, nos moldes do que ocorreu com a Fiorentina, na Itália. O estádio continuará sendo o Vicente Goulart, o temível Vicentão, caldeirão que embalou o Bugre Missioneiro nos anos 70 e 80, com capacidade potencial para 14 mil pessoas (é o sexto maior do Estado), embora hoje abrigue provisoriamente 8 mil.

Antigo escudo do São Borja
A volta do São Borja começou a ser arquitetada em 2008. Naquele ano, o clube retomou as atividades na categoria sub-17. Os resultados já começam a aparecer. Na atual Copa FGF da categoria, o Bugre lidera sua chave de forma invicta. A reestreia nos gramados profissionais será no ano que vem, quando o clube jogará a Terceirona do estadual. No entanto, a tendência é que em breve o São Borja suba degraus e reconquiste um lugar junto aos grandes do futebol gaúcho num médio prazo. Os indícios nos quais me baseio para realizar tal projeção são a boa campanha do sub-17, sinal de um bom trabalho nas categorias de base (fórmula aplicada com sucesso pelo Cruzeiro, sensação do Gauchão 2011) e uma possível parceria com o São Paulo. Além disso, está prevista a construção de um centro de treinamento de 23 hectares (campo é o que não falta na cidade), bancada por um empresário local, mais uma prova de um projeto consistente e pensado.

Por 11 anos, uma pedra no sapato da Dupla
Os mais jovens podem não conhecer, mas o São Borja tem uma história de tradição dentro do Campeonato Gaúcho. Fundado em 1977 a partir da fusão de dois clubes rivais da cidade (o Cruzeiro, azul, e o Internacional, vermelho), o Bugre já nasceu jogando a Primeira Divisão do Gauchão. Atuou ininterruptamente na elite gaudéria até 1987. Sua melhor colocação foi um 5º lugar no estadual de 1980, onde teve papel decisivo nos rumos daquele certame.

Na penúltima rodada da fase decisiva, o Internacional liderava, um ponto à frente do Grêmio, e teria um Gre-Nal no Beira-Rio para confirmar o título na partida final. Naquele 19 de novembro de 1980, o Grêmio receberia o Juventude no Olímpico, enquanto o Inter viajaria 600 quilômetros até o Vicente Goulart para enfrentar o Bugre. O Tricolor venceu o Papo por 1 a 0, gol de Tarciso, mas o Internacional não resistiu à pressão da cancha são-borjense e ao cansaço da viagem, sendo derrotado por 2 a 1, de virada. Com o resultado, o Grêmio pulou um ponto à frente, podendo apenas empatar no Beira-Rio para sair com o bicampeonato. Foi o que ocorreu: 0 a 0, e primeiro título gremista na casa vermelha em toda a história.

Em 1980, o São Borja tinha, além do fator local, um bom time. Faz parte desta que foi sua melhor campanha na história do Gauchão um empate em 1 a 1 com o campeão Grêmio, no Estádio Olímpico. No Vicente Goulart, então, era uma equipe realmente respeitável. Os 2 a 1 sobre o Inter não foram a única vitória sobre o Colorado lá: na primeira fase, o time da Capital já havia sido derrotado por 1 a 0. O Grêmio teve duas partidas complicadíssimas também em São Borja: empate em 0 a 0 e vitória por apenas 1 a 0 - foi uma das duas derrotas do Bugre em casa, em 20 jogos. Não houve soberba vermelha na penúltima rodada: o Inter sabia das dificuldades que enfrentaria.

Um caldeirão para embalar os anos dourados
Estádio Vicente Goulart, a temida casa do Bugre Missioneiro
Atuar no Vicentão era tarefa reconhecidamente complicada, tanto pelo acanhamento das dimensões do estádio como pela longa distância que a imensa maioria dos times tinha que percorrer até chegar à cidade. O próprio Grêmio já havia experimentado as dificuldades em 1978, quando saiu apenas com um suado empate por 1 a 1 de lá. O problema, claro, estava nas viagens que o próprio São Borja tinha que percorrer quando jogava fora de casa. Portanto, o time costumeiramente aproveitava ao máximo o fator local, para beliscar, vez que outra, seus pontinhos longe (longe mesmo) de seus domínios.

O ano seguinte foi quando o clube disputou pela primeira (e única) vez uma competição nacional: a Série C do Campeonato Brasileiro. Não sem muita luta, como manda a história da Terra dos Presidentes. A ótima campanha no Gauchão de 1980 classificaria o time automaticamente à Série C de 1981, mas a CBF publicou a tabela sem o São Borja, incluindo o São Paulo de Rio Grande no certame. As alegações eram que o Vicente Goulart não teria condições de sediar uma partida em nível nacional, por suas acanhadas dimensões, e que a rede hoteleira da cidade era precária. Houve forte mobilização da população, que protestou contra um suposto preconceito pelo fato de que o clube ser da região das Missões (a distância complicaria os deslocamentos dos adversários). O São Borja acabou tendo que disputar um torneio com Juventude, Caxias, Brasil de Pelotas e Guarany de Bagé. Superior a seus adversários, conseguiu jogar a Série C.

A campanha foi inesquecível. Na primeira fase eliminatória, o Bugre eliminou o Joaçaba: 0 a 0 no Vicentão, vitória por 3 a 1 em Santa Catarina. A seguir, o grande teste: o Figueirense. Em Florianópolis, derrota por 1 a 0. Na Fronteira, goleada são-borjense: 3 a 0 e atuação memorável de Müller, que viria a ser o artilheiro daquele certame, com 5 gols. A fase semifinal era composta por dois triangulares, e o campeão de cada um, além do acesso, ia à decisão. O São Borja começou batendo o Olaria em casa por 2 a 0, e a seguir empatou com o Dom Bosco em 2 a 2. Após perder por 1 a 0 no Rio, era preciso vencer o Dom Bosco por qualquer resultado no Vicentão para o tão sonhado acesso. Mas o time de Cuiabá também precisava ganhar, era jogo duro, nervoso e decisivo. Resultado: 0 a 0, Olaria (que nem jogou naquele dia) classificado - sagraria-se campeão, inclusive.

Nos anos seguintes, o São Borja seguia sendo um adversário complicado dentro do cenário gaudério. Naquele mesmo 1981, empatou três vezes com o Grêmio, campeão brasileiro, todas em 0 a 0, tanto no Olímpico como em casa. Em 1983, duas semanas antes de o tricolor conquistar seu primeiro título da Libertadores (e cinco dias após a Batalha de La Plata), o São Borja o venceu por 2 a 1 no Vicentão - ganharia outra, em outubro, por 1 a 0. No entanto, o episódio mais conhecido da relação Grêmio x São Borja ocorreu no vídeo abaixo: foi num empate sem gols com o Bugre no Olímpico que Renato Portaluppi foi vaiado pela torcida e desceu do carro para encarar os corneteiros - ganhando instantaneamente o aplauso dos mesmos.



A decadência
Em 1986 ocorreu uma das últimas façanhas bugrinas: golear o Inter por 3 a 0 no Vicentão. Foi a maior vitória do São Borja contra um dos grandes da Capital. Foi seu último bom campeonato, 7ª colocação. No ano seguinte, teve início a decadência, com o rebaixamento à Segundona Gaúcha, o primeiro na história do clube. Foram vários anos tentando subir. Neste meio tempo, o clube revelou Zé Alcino, artilheiro da Segundona de 1994 e contratado pelo Inter no ano seguinte - mas que faria história mesmo no Grêmio, onde atuou de 1996 a 1999, sendo titular em boa parte do tempo e participando, como titular, das conquistas do Brasileiro em 1996 e da Copa do Brasil em 1997.

Zé Alcino, filho ilustre da terra
Foi precisamente neste ano, aliás, que o Bugre retornou à elite gaúcha, 10 anos depois de ter caído. Em 1996 o São Borja havia chegado em 3º na Segundona, batendo na trave para subir mais uma vez, mas Atlético de Carazinho e Aimoré fecharam as portas e abriram caminho para o clube da Fronteira retornar. A festa foi grande, mas talvez fosse melhor nem ter retornado. Logo na estreia do Gauchão de 1997, derrota de 4 a 0 para o Passo Fundo. A equipe terminou em 27º lugar entre 28 clubes, com 6 vitórias, 2 empates e 14 derrotas. Nem mesmo retornou à Segundona: faliu e fechou as portas.

Portas que se abriram novamente. E que, esperamos, renderão mais uma série de grandes histórias para serem contadas.

Fotos: Projeto Ciber São Borja e São Borja.

Comentários

Zezinho disse…
Bela história e belíssimo texto, Professor. Parece que os teus textos, quando fogem do "cotidiano", ficam melhores ainda.

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Não conhecia a fundo a história do Bugre. Conhecia alguns fatos pitorescos:

- São Borja x Grêmio, no Vicentão, foi o primeiro jogo que meu pai viu no estádio. Time com Éder, Tarciso e André Catimba. Parece-me que com vitória por 4x0;

- O Inter de São Borja foi disputar um amistoso em São Luiz Gonzaga, na década de 1970, e um cara chamado Roque deu uma janelinha no beque do São Borja, um tal de Cassiá. Ficou conhecido na cidade por causa disso;

- E, claro, revelou ao mundo José Alcino da Rosa. Lembro que nos meus álbuns de 1996 e 1998, a ficha de Zé Alcino dizia que ele teria sido revelado no São Borja e eu achava estranho como que o Inter descobriu um cara no São Borja. Não sabia que ele havia sido artilheiro da Segundona.

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Os clubes do Interior estão cada vez mais investindo nas categorias de base. Para um Estado que tem o EFIPAN, o Torneio de Santiago e o Brasileiro Sub-20, está mais do que na hora de termos Estaduais Juvenis e de Juniores, tal como as Copas FGF Sub-17 e Sub-19.

Aliás, a Cooa FGF Sub-17 está no mata-mata. Sabe como está o São Borja?

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Depois que encerrar o mandato, Cassiá deveria assumir como 'manager'. Brizola, Jango e Getúlio voltarão só para fazer uma revoluçãozinha básica - e re-estatizar a AES Sul
Vicente Fonseca disse…
Gracias, Zezinho. Motivação especial para escrever por ser o time da terra da minha família paterna.

Zé Alcino foi artilheiro meio que disparadamente em 1994, coisa de mais de 20 gols. Dia desses mostro a foto da camisa que meu primo Bernardo me presenteou, da época, com patrocínio da CABANHA SANTA CLARA.

Meu pai conta que o Cassiá acordava todo dia bem cedo pra ir pegar o jornal que chegava desde Porto Alegre, para saber notícias de esporte. Era o modo de se manter informado na época.
Vicente Fonseca disse…
O time se classificou pras oitavas no Sub-17 e agora pegará o Zequinha, com a primeira partida no Passo d'Areia.

Segue o @aesaoborja que tu fica por dentro, Zezinho.
Zezinho disse…
Opa, anotado, chefe.

O Nóia pega o Juventude. Os polenteiros ficaram na 3ª colocação geral, atrás de Grêmio e Inter somente.

Parece que o título do Ju, no EFIPAN, não foi mera coincidência
BERNARDO disse…
Isso mesmo. Que alegria em ver o bugre mais uma vez jogando partidas. Lembro que os ultimos jogos que fui assitir no Vicentão foram contro o Dínamo e depois o amistoso contra o Inter qdo da ida do Ze Alcino pro colorado.
Dei ao Vicnete a camiseta pois sabia que ela renderia posts no Blog mais de 12anos depois..asuhasuahsu
Grande abraço.
Vicente Fonseca disse…
Grande Bernardo! Essa camiseta é um dos presentes mais valiosos que tenho. Uma peça histórica.

Abração!