Da "Cebra" para a final

Nosso colaborador cabeludo em pleno Centenário
Fred Posselt Martins*
O relógio marcava 35 minutos do segundo tempo. Estoyanoff recebia a pelota pela direita defensiva e procurava armar uma jogada. Ao tentar o passe, entregava nos pés de Diego Fernández, que como um raio, passara por dois defensores carboneros, pela diagonal, chegando na entrada da área e desferindo um petardo no ângulo direito de Sosa. O Miramar Misiones fazia seu terceiro tento no cotejo que marcava a estreia do Peñarol no Clausura 2011, no estádio Centenário. Estávamos lá.

Era minha primeira viagem para fora do país. Visitava Montevideo sozinho, sem a companhia de familiares e amigos. Teria somente a companhia de Augusto, um mexicano que havia conhecido em Porto Alegre e que, naquele momento, residia na capital oriental. Havia feito um pedido para ele: que fossemos assistir um jogo no Centenário. Dito e feito: no dia seguinte, haveria a estréia do Peñarol no campeonato. Iríamos.

Aqui, abro parênteses: quem estiver lendo esta crônica e não tiver ainda visitado Montevideo e um dia for, deixo dois conselhos. Primeiro: não deixe de visitar o Museo del Futbol do estádio. Segundo: não deixe de falar de futebol com um torcedor uruguaio. São apaixonados pelo esporte e por sua seleção. Nos dias que lá estive, aconteciam os jogos do Sul-Americano sub-20. Cansei de ver torcedores, em considerável número, nos bares assistindo aos jogos com a camisa celeste. E, no dia que o Uruguai ganhou da Argentina por 1x0, apareceram vendedores de artigos da equipe oriental na 18 de Julio (principal avenida da cidade), em plena meia-noite, com buzinas de mão gritando o nome de sua seleção. Pergunta que se faz necessária: alguém já viu algo, no mínimo, parecido por aqui fora da época da Copa?

Mas voltemos ao Peñarol. O jogo era num domingo à noite, às 20h. Última partida da primeira rodada do Clausura. Havia comprado uma bandeira do Uruguai e entrado com ela nas tribunas olímpicas. Encontramos um bom lugar e assistimos a partida preliminar, onde os platinos alentavam de sua forma típica, gritando "Vamo Peñarol, Vamo Peñarol! Dale, dale! Vamo Peñarol!" e sorvendo um mate quente. Não demorou muito e a Barra Amsterdam adentrara em seu espaço, à esquerda de onde me encontrava. Qualquer comparação dela com as torcidas daqui é heresia e insanidade, logo não me atreverei.

O Peñarol mandou a campo um time muito parecido com o que chegou na final da Libertadores. Sosa era o goleiro, o lado esquerdo defensivo era formado por Guille e Dario. Corujo e Aguiar compunham o meio-campo com Martinuccio, e Olivera era o atacante. Some-se isso a presença de Estoyanoff e Mier no banco, que entraram no decorrer da partida. De diferente, o lado direito defensivo e a primeira volância (Freitas ainda não tinha condições de jogo, sendo seu lugar ocupado por Torres, além da presença de Antonio Pacheco no ataque). E Foi assim que o Peñarol estreou no Clausura, naquela noite, onde um gremista e um torcedor do América se encontravam nas tribunas olímpicas do Centenário.

O jogo, de início foi equilibrado, com os aurinegros ambicionando o ataque. Mas, logo, o feitiço virou contra o feiticeiro: a tática do técnico do Miramar é a mesma que fez o Peñarol ir tão longe na Libertadores. Retrancava a equipe como podia e saía para o contra-ataque com três rápidos avantes, que tocavam a bola tão bem que não davam tempo pra defesa carbonera se organizar. O primeiro gol não demorou a sair, em um lançamento da intermediária onde a defesa falhou e Sebastián Fernandez recebeu livre e na cara de Sosa para fuzilar as redes.

Precisando buscar o resultado, o Manya foi todo para o ataque, e logo estava eu comentando com Augusto, em um portunhol arranhado: “Eso diez es muy bueno jugador”. Era o mais habilidoso, o que mais corria, o que mais armava jogadas. Havia também “El ocho”, Antonio Pacheco, que tentava criar algo pelo meio. Mas o placar não se mexeu, e o primeiro tempo terminou com vantagem para “las cebras”.

Na etapa complementar, Aguirre mandou sua equipe para cima. Albín saía e entrava Estoyanoff. Com oito minutos, Darío Rodriguez enfiava um passe para Martinuccio, que fuzilou o goleiro, porém a bola explodia na trave. Tempos depois, Mier, que entrara no lugar de Martinuccio, cruzava a pelota para Estoyanoff, que tinha o gol livre em sua frente, mas acertava a cabeçada no travessão. Quando tudo especulava para um gol dos carboneros (muito mais pela vontade do que pela qualidade técnica), o Miramar  acertava um contra-ataque pela esquerda (da mesma forma que tantas vezes vimos Mier e Martinuccio acertarem nessa fase eliminatória da Libertadores) suficiente para anotar o segundo tento. O terceiro veio dois minutos depois, da forma que descrevemos no primeiro parágrafo.

Em meio aos assovios de reprovação que os “hinchas” faziam cada vez que Estoyanoff tocava na esférica depois de seu erro fatal, conversava com Augusto sobre o rendimento do time. Era consenso: o Peñarol, pelo que apresentara, não tinha uma equipe confiável, e talvez sofresse para, no mínimo, classificar-se em seu grupo na Libertadores. Saí com aquela impressão do estádio.

No dia seguinte, o El País, em sua excelente cobertura esportiva sobre a primeira rodada do Clausura, apontava algumas curiosidades que não tinha conhecimento. Primeiro, que a partida foi histórica para o Miramar: a maior goleada da equipe em cima do Peñarol, em toda a sua história. Segundo: Olivera, que me passou a impressão de ser péssimo jogador, era o goleador da equipe, e estivera em má jornada. E terceiro, que aquela não era a equipe ideal de Aguirre, pois chegariam reforços para melhorar o plantel – algo que só se confirmou em sua defesa, reforçada com Valdez e Freitas.

Minha opinião sobre esse time melhorou um pouco no último dia que estive em Montevideo. Havia pego um táxi para o aeroporto Carrasco. Ao descobrir que eu era de Porto Alegre, logo o motorista perguntou:
- De Gremio o de Inter?
- De Gremio, y usted? Nacional o Peñarol?
- Peñarol.

E logo o papo sobre futebol se desenrolou. Entre os diversos assuntos, contara-me que ajudava no treinamento das categorias de base do Manya. Havia comentado com ele que havia assistido a partida contra o Miramar no Centenário, e não havia me agradado o desempenho dos carboneros. Ele retrucou, falando que chegariam reforços para aprimorar a equipe e que acreditava em Aguirre, que havia feito um bom primeiro semestre em 2010. Eu havia comentado também que, da partida, só tinha gostado de Martinuccio e Pacheco. “Oh, Pacheco... Ya se fue su tiempo, ya está viejo”. E quando o assunto passou a ser Libertadores, ele tinha uma certeza: o Peñarol faria uma boa campanha e iria longe no torneio, sete anos depois de sua última participação.

O fato é que, quatro meses depois, vejo os uruguaios na final e lembro do que aquele taxista comentou comigo sobre confiar em Aguirre e falar de Pacheco. Creio que o sucesso dos aurinegros passa por aí: seu sistema ofensivo. Martinuccio, até a partida contra o Inter no Beira-Rio, era meia esquerda, enquanto o atacante movediço era Pacheco, jogador experiente, capitão e goleador da equipe nas temporadas de 2009 e 2010. Quem puxar da memória, vai lembrar que foi assim que jogaram contra o Inter no Centenário. Porém, devido à idade de Pacheco (34 anos), o time não saia rápido pro ataque, além de deixar um habilidoso jogador escanteado na esquerda e outro rápido e técnico no banco. Ao sacar Pacheco, Aguirre deslocou Martinuccio para um lugar onde rende muito mais, e colocou Mier em seu lugar pela esquerda. O resultado é o que pudemos ver durante toda a fase eliminatória da Libertadores, onde o maior trunfo dos uruguaios foi a sua capacidade de sair pro contra-ataque de forma efetiva e rápida.

Quando a partida contra o Miramar terminou, esperava uma vaia dos torcedores, que já reclamavam muito quando o jogo estava 2x0. Não foi o que aconteceu: todos aplaudiram a equipe em sua saída pro vestiário. E, ao lembrar desse gesto e de toda a festa e cordialidade dos uruguaios (todos sentados em seus lugares na Tribuna Olímpica, ninguém de pé como acontece na Social do Olímpico) naquele dia que conheci o Centenário, não há como não simpatizar com o fato de ver aquele time, derrotado de forma histórica para um clube menos expressivo, estar hoje numa final de Libertadores vinte e quatro anos depois. Ao lembrar da torcida carbonera, da Barra Amsterdam e dos uruguaios nos bares vibrando com os jogos da seleção sub-20, impossível não ver justiça no fato de estarem voltando com força ao cenário dos grandes do futebol. A torcida aurinegra, especialmente a uruguaia, merece essa final, merece esse evento. Por todo o seu fanatismo, por toda sua paixão. E principalmente, por toda a sua história no futebol mundial.

* Colaborador especial do Carta.

Comentários

Igor Natusch disse…
Muy lindo.