Guerra é futebol

O fantástico mito sobre os jogadores do Dínamo de Kiev que foram fuzilados após vencerem uma equipe do exército alemão durante a Segunda Guerra Mundial é história já bastante conhecida. Em “Futebol e Guerra”, o jornalista escocês Andy Dougan tenta reconstituir os fatos mostrando que a história realmente aconteceu, mas que, como todo mito, fora aumentada ao longo das décadas que se seguiram. A versão que ganhou mais força após a guerra fora a de que onze jogadores, todos do Dínamo, foram colocados a trabalho forçado na mesma fábrica de pão em Kiev, após lutarem para defender a cidade. Mesmo sob jugo estrangeiro, jogavam futebol quando podiam e ganhavam admiração até dos alemães que os convidaram para uma partida. Vencendo a primeira com facilidade, foram convidados para uma revanche pelos alemães. Mesmo com fome, exaustos, com juiz contra e sabendo que deveriam perder, os ucranianos voltaram a vencer. Então foram levados por um caminhão a um campo de extermínio e fuzilados ainda com os uniformes de jogo. O que Dougan descobriu foi uma história menos exagerada, mais complexa, mas que, ainda assim, reforça a hombridade dos atletas imortalizados naquelas páginas da história. Na verdade, o FC Start foi um time formado não só por atletas do Dínamo como também do Lokomotiv de Kiev. A equipe jogou não só duas partidas contra os alemães, mas uma temporada de amistosos no verão de 1942 contra vários times. Cerca de um ano após a tomada de Kiev (ocorrida em 1941), os germânicos tentaram restabelecer uma aura de normalidade ao cotidiano da principal cidade ucraniana. Escolas voltavam a funcionar, igrejas rezavam missas, até um café fora inaugurado e apresentava uma orquestra de jazz – tudo sob rígido controle, é claro. Os nazistas gostaram da ideia de que a prática esportiva fosse como uma válvula de escape para os ucranianos. Não só o FC Start, formado por jogadores da fábrica de pão, como outros times foram criados. A esta altura, um tcheco de origem germânica que há muito vivia em Kiev, já realizava um sonho secretamente. Josef Kordik tinha privilégios, por sua origem, no sistema de castas que os alemães formavam nos territórios dominados. Por isso conseguiu o cargo de gerente de da fábrica de pão da cidade. Kordik um dia topou com Trusevich, o outrora carismático e arrojado goleiro Dínamo, quase em estado de mendicância, e o acolheu na fábrica.
Com ajuda de Trusevich, Kordik foi encontrando e aglutinando vários grandes atletas (não só de futebol) na fábrica, dando-lhes emprego e morada. Longe de ser um subversivo, Josef era um apaixonado pelo esporte e essa é uma das grandes histórias contidas no livro. Quando se acenou com uma temporada de apresentações de futebol no verão, a fábrica de pão já reunia alguns dos melhores atletas do grande Dínamo pré-guerra, e também do Lokomotiv. Os jogadores inclusive treinavam secretamente e os soldados alemães nem imaginavam que aqueles homens varrendo a fábrica, ou trabalhando como carregadores eram ídolos para os kievanos e que Josef regozijava-se ao ver aqueles homens tão perto, em poder ajudá-los. Após uma série de goleadas impingidas nas partidas amistosas o FC Start, da fábrica de pão, tornou-se um dos poucos alentos para os então resignados ucranianos, que passaram a lotar o estádio e até, no calor das partidas, zombar dos alemães. A goleada derradeira da temporada seria contra o Flakelf, formado por soldados alemães, fáceis 5 a 1. Diante do resultado, uma revanche teve de ser feita. Os alemães se reforçaram com soldados bons de bola de outras localidades. O juiz era um funcionário da SS, que foi até o vestiário antes da partida insinuar que os jogador do FC Start deveriam utilizar a saudação nazista às autoridades presentes ao entrarem em campo. Mesmo com a intimidação o resultado foi de 5 a 3 para os ucranianos. Andy Dougan conta que a represália veio só dias depois e não logo após o jogo como diz o mito. E foram quatro os jogadores presos, não o time inteiro. O meio-campista Nikolai Korotkykh foi morto logo, por ser da NKVD, órgão de polícia da União Soviética. Outros três jogadores - Trusevich, Kuzmenko e Klimenko - ficaram apodrecendo aos poucos em um campo de trabalhos forçados e extermínio. Sobre os horrores da dominação alemã, o livro também traz riqueza de detalhes (até demais, para quem tem estômago fraco). Há também boas considerações sobre história e cultura da Ucrânia, sobre a batalha na frente oriental da Europa na guerra. Boas também são as informações sobre o futebol soviético na época, e sobre os protagonistas do FC Start, suas características de jogo, suas histórias de vida. Dougan baseou sua pesquisa principalmente no jornal Nova Ukrainski Slovo, veículo criado durante a dominação alemã – subserviente aos nazistas - em diversos livros, em depoimentos colhidos de arquivos soviéticos e no relato de Makar Goncharenko, um dos jogadores sobreviventes, em entrevista a uma rádio ucraniana, em 1992 (50 anos depois). “Futebol e Guerra” peca, entretanto, como vários livros-reportagens e biografias, porque o autor o narra como uma prosa de ficção, com diálogos e cenas bem descritas. Esse não é o problema. O problema é quando, em nome do estilo, o autor deixa de citar como chegou a determinada informação, o que ocorre por diversas vezes no livro, ainda que em outras vezes fique bastante claro. Ainda assim, o valor do relato de Dougan é inestimável, até porque a história por si só é sensacional, mas também por sua riqueza de informações e toda a complexidade que ganhou o mito. E sempre causa fascinação em que é louco pela história do futebol, quando esta se mistura tanto com a história política ou cultural. Além disso, a prosa é leve, dinâmica. É livro para ser devorado em poucos dias como fiz no Ano-Novo.
Foto: Estátua que existe até hoje em homenagem aos quatro jogadores mortos, em frente ao Estádio Dínamo.

Comentários

Lourenço disse…
Essa história, romanceada ou não, é sensacional e digna de ser contada. Legal o tema do post.
natusch disse…
Trata-se, de fato, de uma história muito forte e marcante. São situações do tipo que mostram que o futebol é muito mais que 22 marmanjos correndo atrás de uma bola. Muito legal o post, e fiquei com muita vontade de arranjar o livro!
Prestes disse…
Se tu morasse em Porto te emprestava Natusch, hdfhufduhfdshufsdhusdudsfd

Mas leiam mesmo. Vale a pena.
Vicente Fonseca disse…
Massa, Prestes. Fiquei afim de dar uma lida também. E eu moro a poucos metros de ti. hehe
Prestes disse…
hsushuahss

Te empresto sim.